Segurar a arma na mão e ser capaz de detruir algo que se criou espontaneamente, de perturbar a ordem intocável da natureza, é o que atrai e o que ilude Michael. Uma trucagem de controle. Cimino trata, em cena, de contradizer esta impressão e revelar o mecanismo ao absorver panoramas inteiros para dentro de sua lente, filmando o processo da caça não como uma ação artifical, mas como algo belo e orgânico, registrando a movimentação do homem e seu rifle (agora extensão de seu corpo) como um mero elemento compondo o organismo da paisagem, e portanto, sob a perspectiva adequada, um objeto a mais que se enreda na cadência natural das coisas. Envolto, não intervindo.Os planos, que começam amplos e longitudinais como se tentassem abraçar de uma só vez a lassidão una da montanha, vão se fechando à medida que o predador encurrala sua vítima. O tiro é seguido de um close que decodifica para o espectador o prazer inominável de Michael, uma sensação que, a partir dali, estaria perdida para sempre.
Quando a ação volta a um ritmo mais ou menos discernível, já estamos presos em uma jaula aguardando o chamado da roleta, tribunal do acaso, o mais maligno e inapelável dos deuses. É a descoberta da impotência absoluta e da submissão ao fatalismo da vida que dita este rito de passagem para Michael, Nick (o monstro Christopher Walken) e Steven (John Savage), demonstrando com dolorosa clareza que a ilusão do infinito, aquela própria da perspectiva juvenil, havia chegado ao fim, e que nada nunca mais seria como antes.
Daí aquele deslocamento lacunar no retorno para casa, apenas porque o retorno para casa já não é possível. A noção de “lar” (e mesmo de “retorno” a qualquer lugar que seja) perde sentido, e o amor, de certa forma também um lugar para o qual se retorna, deixa de existir. Michael não consegue se aproximar de Linda nem ela dele sem se aproximar também do fantasma da vida antes da guerra, da memória de Nick e Steven, e, acima de tudo, da memória aterradora deles mesmos, pessoas diferentes, estranhos um ao outro. Se Linda o abraça por necessidade, Michael a abraça de volta por pena, e esse pretendido amor, o mais puro e espontâneo dos sentimentos (ou mesmo algum carinho, genuíno, que não baseado em qualquer elemento ligado à guerra ou a Nick), já não encontra terreno para vingar. A frase final de Nick, “one shot”, mostrando lembrar do que disse Michael a respeito da cerimônia da caça, lança sobre aquele último tiro um fragmento de clarividência que parece acender em círios todos os minutos que se estendem até aquele momento. Se Nick lembra da vida antes da guerra e se reconhece o rosto à sua frente, então a loucura é uma farsa, e a decisão de largar-se à sorte é limpa e consciente. Nick não morre porque perde a cabeça diante dos horrores da guerra, mas pela lucidez cristalina que a guerra lhe concedeu. Neste caso a escolha é o privilégio derradeiro, e a morte, quase uma redundância.
Em solo americano, o pós-Vietnã é apenas uma semi-vida, e o mundo como costumava ser surge feito um sonho do qual se esquece ao acordar. Assim como Pat Garrett sabe que a morte de Billy the Kid é por extensão a sua (Pat Garrett & Billy the Kid [idem, 1973]), como Eastwood que se despede e se retira solenemente das telas em Gran Torino (idem, 2008), ou como o triste discurso de Tommy Lee Jones a respeito do sonho com seu pai em Onde os Fracos Não Têm Vez (No Country for Old Men, 2007) (já não por acaso tudo sempre volta ao western e a essa sua estranha ligação com a morte), Michael compreende no momento da extinção que a cidade para a qual voltará é agora e para sempre uma cidade fantasma. É essa perda de identidade e a duplicidade do tiro de Nick que selam também o destino de Michael. É por essa ligação imanente entre os dois, partes indissociáveis de uma só concepção de vida, que ele retorna a Saigon para buscá-lo. Há no resgate uma última chance para recuperar o que havia se perdido, e há nesse disparo um nexo apocalíptico, um impacto que sentencia também Michael à morte, como a bala no espelho ao final de Pat Garrett. Em ambos é ao sorteio fadário que cabem todas as decisões. Por isso o sorriso aberto no rosto de Nick. Ao segurar a arma e apontá-la para a própria cabeça, ele toma também nas mãos como um artefato raro o controle sobre a vida; quebrando enfim o encanto, derrotando a dinâmica viciosa do próprio jogo, até então absoluto e invulnerável.






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